Dia 10 – Grupos Reflexivos de Homens Autores de Violência Contra Mulheres, Uma Política Pública Necessária – 29 de Novembro

A violência de gênero, doméstica e familiar é um fenômeno complexo, multidimensional e, de modo “democrático”, atinge a todas as pessoas, ainda que, em verdade, impacte muito mais pessoas vulnerabilizadas. A raiz dessas violências está nas desigualdades estruturais presentes na sociedade; as desigualdades provocadas por culturas patriarcais, racistas, capitalistas, esta sim base dessas estruturas no dizer de Saffioti (p. 115). As disputas de poder estão cristalizadas em relações de desrespeito, ausência de diálogo e objetificação das mulheres e meninas, com recorrentes violações de direitos.

É um imperativo promover-se uma verdadeira transformação social que previna e enfrente adequadamente as violências de gênero e, em especial, a doméstica e familiar, e isso passa pela implementação de políticas públicas efetivas que incluam homens e a educação em sua dimensão integral.

A Lei nº 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha inovou ao adotar a perspectiva de direitos humanos, de assistência às mulheres em situação de violência, mas, sobretudo, de prevenção da ocorrência e/ou reincidência das violências. Vide o caput do art. 8º, que dispõe: – a política pública visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações. Nos incisos I ao IX restam estabelecidas diretrizes, referes a integração operacional dos poderes e serviços, realização de campanhas, estudos e pesquisas, programas educacionais e inclusão nos currículos escolares. Mais, a referida lei inovou ao prever medidas protetivas de urgência e, sobretudo, ao estabelecer a possibilidade de o juízo encaminhar a centro de educação e a reabilitação os agressores.

Recentemente, em 2020, restou instituído através da Lei nº 13.984, medidas protetivas de urgência que obrigam ao agressor o comparecimento a programas de recuperação e o acompanhamento psicossocial por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio, consoante os incisos VI e VII respectivamente, do art. 22, da Lei Maria da Penha. A discussão de que essa medida representaria prévia condenação sem o devido processo legal caiu por terra. Ao propor-se a reflexão e a ressignificação das masculinidades, com vistas à desconstrução de hierarquias e naturalizações de violências como única possibilidade de resolução de conflitos é uma medida salutar para todos. Esse foi o entendimento do STF.

Outrossim, cumpre lembrar-se de Drummond, que dizia que “os lírios não nascem das leis”, de fato, uma lei por si só não transforma uma realidade. Ela precisa ser acompanhada de uma ampla participação social, mudança de paradigmas, de desconstrução de velhos valores e a elaboração de novas metodologias educacionais e culturais. Em uma sociedade que tem como prioridade o capital, todos os sujeitos são vistos como mercadorias e são vitimados por constantes e diversas formas de violência, reproduzidas nas relações sociais. Em razão disso, as dimensões interseccionais precisam ser consideradas – gênero, raça e classe são categorias de análise que contribuem na construção das normativas e de políticas públicas promotoras e garantidoras de direitos.

No que refere às violências domésticas, os dados são incontestes, vide o Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública e o Atlas da Violência de 2024; as violências contra as mulheres assumem proporções alarmantes e perversas, vitimando, sobretudo mulheres periféricas e negras, em seus próprios lares.

Também pesquisas e análises realizadas pelo Observatório NOSOTRAS, UCPEL confirmam essa assertiva; as violências de gênero – doméstica e familiar na região sul do Estado são graves e exigem uma atuação firme, efetiva, que vá além das denúncias e dos protestos, mesmo que isso sejam igualmente importantes.

O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, em toda a sua complexidade, exige que busquemos meios resolutivos e/ou alternativos visto que até agora temos, em certa medida fracassado. Assim, considerando os diversos agentes envolvidos, deve-se lançar o olhar acolhedor e sensível a elas, garantido serviços eficazes de apoio, orientação e assistência e sobre os homens, afinal, são eles os violadores de direitos.

O estudo do direito comparado nos mostra que a legislação brasileira bastante avançada; não obstante, entre a lei a práxis nos territórios, há um grande distanciamento, para não se dizer, um grande fosso! Para compreender e apresentar ferramentas para combater a violência de gênero, especificamente a ocorrida no espaço doméstico, local e resultado de relações de poderes, onde as vítimas, em sua maioria, são companheiras ou ex-companheiras e filhas, netas ou sobrinhas dos autores da agressão, é preciso que se busque implementar a já prevista na Lei Maria da Penha. Além de campanhas e qualificação continuada de profissionais que atuam em diversas áreas, fortalecendo redes de serviços; apoio e assistência, e que essas sejam de amplo conhecimento da sociedade como um todo, inclusive dos profissionais que atuam, visto que, não raro, deparamo-nos com algumas pessoas desconhecerem completamente direitos, e atribuições, precisa-se investir bem mais nos trabalhos com os homens, visto que ocorrem em pouquíssimos municípios.

Urge uma mudança de cultura e para isso, os Grupos Reflexivos de homens autores de violência são ferramentas que podem muito contribuir para isso, pois são iniciativas com o objetivo de possibilitar condições para que homens autores de violência contra as mulheres repensem seus papéis nas relações familiares e de afeto, nos termos da Lei Maria da Penha, tudo com vistas à redução dos casos de reincidência no âmbito da Violência Doméstica e Familiar.

Refletir e ressignificar masculinidades, com vistas à desconstrução de hierarquias e naturalizações de violências como única possibilidade de resolução de conflitos, são meios positivos de se mudar a cultura dominante promotora de desigualdades e violências. Espaços de diálogo; fala e escuta respeitosas são essenciais.

Esses encontros breves devem proporcionar o engajamento da população masculina na promoção da equidade de gênero e nas ações pelo fim da violência doméstica e familiar praticada por homens contra as mulheres. A importância de criar espaços de atendimento para homens autores de violência contra mulheres está na possibilidade de proporcionar ao sujeito a chance de reconhecer suas dificuldades para lidar com suas subjetividades e masculinidades e criar instrumentos para lidar com elas.

A partir de um processo de responsabilização, reflexão e reeducação, seguindo uma metodologia própria, com um número de encontros planejados cuidadosamente (uns falam de 10/12 reuniões, de hora e meia, duas horas), são discutidos assuntos voltados as vivências e histórias de vida, à masculinidade, gênero, relações afetivas em todas as suas nuanças, o sentimento de posse, o perdão e o auto perdão. O objetivo é orientar o homem a rever e transformar os próprios valores, trabalhar a agressividade e a adotar novas formas de comportamento que não resolvam os conflitos pela violência.

Vale sinalar-se, que os grupos reflexivos não são tratamentos terapêuticos e não são recomendados para pessoas com quadros exacerbados de sofrimento ou desorganização psíquica. Essas, deverão ser encaminhadas aos serviços de saúde do município, que poderão priorizar o atendimento.

Ademais, impõe-se que o próprio sistema de justiça se atualize, abandone posições sacralizadas e conservadoras, e que passe efetivamente a observar o Protocolo de Julgamento com a Perspectiva de Gênero. Tanto o Conselho Nacional de Justiça como o Conselho Nacional do Ministério Público produziram, respectivamente, as Recomendações n.ºs 124/22 e a 13/22, que precisam ser implementadas pelos respectivos agentes públicos. O CNJ recomenda que os tribunais instituam e mantenham programas de reflexão e responsabilização de agressores. Já o CNMP recomenda que os órgãos do Ministério Público implementem projetos de recuperação e reeducação de agressores. O recente Protocolo de Julgamento sob a perspectiva de Raça, lançando no dia 19 último por igual precisa ser de conhecimento da sociedade e ser aplicado no sistema de justiça.

Por fim, conclui-se que precisamos investir fortemente em políticas públicas, como as dos Grupos Reflexivos, que pela autorresponsabilização e darão a atribuição de um novo sentido à passagem do autor das violências pela justiça. 

Os Grupos Reflexivos contribuirão para a transformação da cultura patriarcal e machista, desconstruindo a misoginia, os preconceitos e construindo novos paradigmas, dando espaço às concepções de autonomia e emancipação, pois só assim passaremos para outro patamar civilizatório em que relações de afeto com equidade não sejam utopia e sim uma realidade para todas as pessoas!

Por Neusa Elaine Couto Ledesma – Pres. da ABMCJ RS, Advogada Familista, Ativista dos direitos das Mulheres, Integrante de coletivos. E-mail: neusaledesma@hotmail.com. Cel.: 53-999813646

REFERÊNCIAS:

BEIRAS, Adriano; MARTINS, Daniel Fauth Washington; SOMMARIVA, Salete Silva; HUGILL, Michelle de Souza Gomes. Grupos reflexivos e responsabilizantes para homens autores de violência contra mulheres no Brasil: mapeamento, análise e recomendações. Florianópolis: CEJUR, 2021.

COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento Feminista Negro.1ªed. São Paulo: Boitempo, 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº. 124, de 7 de janeiro de 2022. Recomenda aos tribunais que instituam e mantenham programas voltados à reflexão e responsabilização de agressores de violência doméstica e familiar.

FONAVID. Enunciados do FONAVID, atualizados até o XV FONAVID, realizado em Porto Alegre, de 24 a 27 de outubro de 2023.https://fonavid.amb.com.br/enunciados2.php

PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA GÊNERO, 2021. https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/ https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf

SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher e a revolução: o gênero no contexto social e político. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero. Patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.

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