Calendário Feminista – 14/09 Dia Latino-Americano da imagem da mulher nos meios de comunicação
Quem viveu a popularização da televisão e a multiplicação de revistas semanais nas bancas durante os anos 1970 sabe que a imagem das mulheres nos meios de comunicação mudou muito e, sim, melhorou. Mas não se enganem, continua igualmente machista e segue reforçando a misoginia que estrutura nossa sociedade.
É mais ou menos dessa época — coincidência ou não, o período de distensionamento final da ditadura e de início do processo de redemocratização do país — o programa de rádio Viva Maria, iniciado em 1981 na Rádio Nacional do Amazonas, atualmente um programete veiculado pela EBC que está comemorando 44 anos de resistência. É o programa mais antigo da radiodifusão brasileira a abordar os direitos das mulheres. Seu conteúdo é breve — são no máximo dez minutos diariamente, de segunda à sexta-feira. As informações repassadas promovem questionamentos tão robustos que o programa chegou a ser interrompido no início dos anos 90.
Talvez tenha sido esse processo de censura contra o Viva Maria o segredo de sua longevidade. Combustível para que questões sobre igualdade de gênero passassem a ter mais visibilidade e atenção, sua data de criação, 14 de Setembro, foi incorporada ao calendário de direitos das mulheres da América Latina e Caribe. Vem daí o Dia Latino-Americano e Caribenho da Imagem da(s) Mulher(es)* nos Meios de Comunicação. (*escolho usar no plural no sentido de abarcar toda a diversidade de mulheridades, a efeméride está flexionada no singular mesmo)
Ainda que a nossa imagem não seja mais tão ridicularizada como era nas páginas de revistas dos anos 1950 até bem depois dos anos 1990, seguimos sendo retratadas como enfeite, com bem pouca diversidade etária, física e racial e raramente somos retratadas em posições de comando sem que este lugar seja fetichizado.
E falando em fetiche, até mesmo quando o assunto é denúncia de violência, as imagens de mulheres sendo espancadas, violentadas, humilhadas e até mesmo assassinadas são repetidas à exaustão. A isso chamo de fetichização da violência contra a mulher. Quando a própria denúncia de atos bárbaros se torna bárbara.
Dizem que o diabo mora nos detalhes e é neles também que somos seduzidos — todos, sem distinção — e envolvidos na trama do fetichismo da violência contra a mulher. Tem quem se delicie — mesmo sem perceber e mesmo que seja com a “boa intenção” da denúncia — com a imagem ou a descrição do martírio de uma mulher. De chute nas costas na rua a 61 socos em elevador, passando pela descrição pormenorizada de assassinato com mais de 120 facadas. Espancamentos, esquartejamentos, concretamentos e descartes no lixo de corpos de mulheres estão na ordem do dia. Todos os dias.
Se por um lado tivemos avanços, é preciso reconhecer que mesmo com mulheres sendo expressiva maioria nos meios de comunicação, ancorando telejornais de abrangência nacional, chefiando redações de jornalismo ou equipes de publicidade, a sociedade ainda não mudou e o lugar das mulheres, inclusive o que está retratado nas imagens, é de subalternidade e submissão — ainda que não pareça.
Refletir e reconhecer os avanços e também a demora em vencer obstáculos seculares pode reduzir o tempo para finalmente conquistarmos de fato equidade de direitos e presença nos meios de comunicação. Até lá temos muito a debater sobre nossos direitos, principalmente o DIREITO À COMUNICAÇÃO — mencionado no ponto J da Plataforma de Beijing há 30 anos. Programas como o Viva Maria permanecem necessários e imprescindíveis. Que se multipliquem.
Por Niara de Oliveira, jornalista e escritora especializada na cobertura de violência contra a mulher, co-autora do livro Histórias de morte matada contas feito morte morrida, a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira (Drops Editora, 2021) — finalista do Jabuti 2022, ativista da Frente Feminista 8M Pelotas.